terça-feira, 24 de agosto de 2010
"O Verde é conservador?"
Carta Maior.
Marina Silva se tornou uma política conservadora, que facilmente pode ser incorporada no discurso religioso de salvacionismo do planeta, com o qual ela está afinada. As suas idéias encontram uma pirâmide consistente de valores: Deus, Ambiente e Sociedade. Ela é a primeira do novo cristianismo brasileiro a parecer viver pela idéia que considera verdadeira. Com capacidade, inclusive, de conquistar os conservadores brasileiros - aqueles que não possuem um projeto de poder deliberado, mas que aceitam a vida tal como ela é. O projeto ambiental no Brasil é um projeto por acontecer. E não virá do PV, que deve ser implodido como casa de um pobre conservadorismo sem poder. O artigo é de Cesar Kiraly.
Cesar Kiraly (*)
Artigo publicado originalmente no portal O Pensador Selvagem (OPS)
Um pouco que a história anda as oposições quase-fundamentais são jogadas para baixo do tapete em benefício da coerência de superfície. Mas uma coerência de superfície nada mais é do que uma tensão superficial e uma vez que a rompemos, aquela infinidade de bichinhos que conseguem reinar nesses cincos minutos é afogada como que de repente. Isso ocorre com a esquerda. Existe uma séria oposição entre a esquerda e a religiosidade e entre a esquerda e o ambientalismo. Por esquerda quero dizer movimentos populares que encontram vínculo histórico no século XVIII e que disputam o poder com os proprietários de terra, os industriais, os detentores dos meios de informação e os especuladores que emprestam dinheiro a juros altos.
Numa primeira chave a esquerda rivaliza com a religião, porque a idéia de que um princípio de ordem metafísico governa as coisas tal como elas são é profundamente inconciliável com a tentativa de criar um novo princípio de ordem quer pela violência, quer pelo movimento de trabalhadores, quer pela disputa parlamentar (em democracias majoritárias) ou numa intercalação história de todos esses elementos. Na outra, rivaliza com o monopólio dos meios produtivos. O conservadorismo verde rivaliza, como a esquerda, com os meios produtivos, mas não porque considere que eles devem ser ampliados, mas porque julga que existe um valor mais relevante que a população, o ambiente. Assim, o poder exercido pelas religiões é opositor do poder exercido pelos grupos sociais reativos. Nesse perspectiva, o conservadorismo do verde é mais próximo do conservadorismo religioso, enquanto que esquerda e capitalistas se aproximam da ideologia produtiva.
Mas por que não digo logo sociedade? Porque nem todos os componentes da sociabilidade possuem qualquer preocupação com o poder. Essa obsessão com o poder é característica dos que pensam em produção. O verde não tem um projeto produtivo de poder, mas deseja estacionar a produção em benefício de um outro tipo de vida. Uma vez que a história muda a relação entre as coisas – e o capital se mostra imprevisivelmente destrutivo (o que torna o acordo entre padres e capitalistas uma furada para os primeiros) – os padres aderem à esquerda. Não que eles tenham abdicado do monopólio do princípio de ordem do mundo, mas apenas porque perceberam que a demanda pelas almas não faz muito sentido na destruição completa das coisas, mas o enfrentamento histórico está colocado. Se os padres aderirem ao poder se tornarão oponentes da esquerda. Se a esquerda se tornar poder, mais uma vez os padres serão adversários. Mas ainda que os padres tenham feito uma pequena composição com a esquerda, por que não fazer uma composição mais efetiva? Por que não uma aliança verde? Nisso está o novo quadro político brasileiro. A disputa pelo poder democrático que recoloca a temática metafísica de aspecto sagrado da natureza. Trata-se de ganhar das classes produtivas, em benefício da vida.
Mas disse também que a esquerda não é ambientalista. O digo por algumas razões. Porque a idéia de ambiente está assaz ligada às concepções de nome e sangue. E por mais que essa relação não seja imediatamente invocada quando pensamos no desmatamento amazônico. Uma das razões mais límpidas que nos faz não querer vê-la abaixo é que ela pertence ao nome e ao sangue de alguém (digo das múltiplas diversidades de pessoas que lá vivem). Assim, ainda que não seja o caso de fazer com que a floresta amazônica supra a necessidade de poder dos movimentos sociais, não é estranho ao nosso modo de pensar que empurrar os mais pobres ao desvendamento amazônico, não seja uma das ações que podem ser feitas para lidar com os mais pobres.
A esquerda não é ambientalista. Porque distribuir renda e tomar o poder concerne, dentre muitas outras coisas, em produzir para muitos o que antes era produzido para poucos e tornar aquilo que era de poucos a propriedade de muitos, quando não, a propriedade abstrata de uma soberania político popular ativa. A esquerda não é ambientalista, porque igualdade (e liberdade como igualdade) significa produção e não há como produzir sem destruir. Mas com isso eu quero dizer que a direita é ambientalista, porque quando a propriedade é de poucos se conserva mais? Não é isso que quero dizer. Porque ainda que a propriedade seja de poucos ela será destruída da mesma forma, mas para o benefício de poucos. A idéia é que a esquerda pode destruir para o benefício de muitos. Contudo, não há que objetar que o ritmo da destruição ambiental dos movimentos de distribuição de renda é muito mais acelerada do que dos braços capitalistas ou conservadores.
O movimento verde, portanto, nasce do isolamento de um pequeno sentido conservador. E cabe dizer que o verde é tão avesso ao capitalismo como o são os padres e os movimentos de esquerda. Mas que sentido é esse? De que não vale a pena distribuir renda à custa do meio ambiente e que talvez modos de relação social conservadoras sejam melhores do que relações sociais populares. Para o verde o ambiente é um valor mais importante do que a luta pela supressão da dominação entre classes sociais (se as duas coisas puderem vir juntas, melhor). Para a esquerda, a luta contra a dominação de uma classe pela outra, num primeiro momento, e a gradativa supressão da relação entre classes (quando não a supressão revolucionária), é um valor mais importante do que o meio ambiente.
Os mais cínicos dirão: então o que a esquerda deseja, distribuir renda à custa da destruição da biosfera, onde vamos viver a nossa igualdade, se não há mais nenhum lugar para se viver? Por certo que a pergunta faz muito pouco sentido, porque os problemas não se colocam dessa forma.
Seria mais ou menos como pensar que alguém muito deverás estetizante possa desejar destruir populações para nisso ter a sua obra de arte. A questão aqui é de prevalência. Mas a prevalência não abstrai a relação entre os termos. Também os verdes se haverão com a pobreza, ou os capitalistas, tal como a esquerda precisa enfrentar o problema do meio ambiente. Mas para a esquerda a distribuição de renda é um valor mais importante do que o ambiente.
Marina Silva (MS) é o personagem mais interessante dessa eleição. Porque é relativamente novo, enquanto posição dramatúrgica. A defesa da produção e da concentração de renda pelos tucanos (com paliativos de herança histórica contra a pobreza, mas sem inovação) é mais do que conhecida e a defesa da produção com distribuição de renda pelo Partido dos Trabalhadores, também. Mas MS é um personagem novo, que pode ser desmantelado, ou não, isso dependerá de uma série de outros fatores.
Como Cristóvão Buarque era uma personagem interessante que foi desmantelado, dentre outras razões, porque a sua defesa da primazia da educação é um truísmo. MS era uma ativista de esquerda com preocupações ambientais. Mas por questões de convicção se tornou uma ativista verde com preocupações de esquerda. Ela representa certa tendência do PV, que não é a única, tampouco é a dominante. No momento em que MS rompeu com o governo, julguei que seu projeto de uma democracia ambiental estava afinado com a distribuição de renda, nosso grande problema, acertei acerca do significado do rompimento, que julguei bastante salutar, mas errei sobre o fato da composição de um projeto ambiental de esquerda externo ao PT.
MS se tornou uma política conservadora, que facilmente pode ser incorporada no discurso religioso de salvacionismo do planeta, com o qual ela está afinada, não se trata de um projeto de emancipação, mas de pacificação com a própria servidão voluntária. Ela é o personagem mais interessante desse novo cristianismo de forte reorientação de vida, que teve em personagens pouco elogiáveis alguns de seus representantes, mas é em MS que parece que um personagem consistente aparecerá. Porque não penso que ela não tenha idéias, penso que as têm e com bastante convicção, e nessas idéias encontra uma pirâmide consistente de valores: Deus, Ambiente e Sociedade. Ela é a primeira do novo cristianismo brasileiro a parecer viver pela idéia que considera verdadeira. Com capacidade, inclusive, de conquistar os conservadores brasileiros - aqueles que não possuem um projeto de poder deliberado, mas que aceitam a vida tal como ela é - órfãos que estão de uma possibilidade política não empresarial.
Assim, devo dizer que creio que o projeto ambiental do Brasil não poderá vir de nenhum outro lugar que não do Partido dos Trabalhadores. Ou seja, consiste num projeto por acontecer, e por ser formulado, o PV deve ser implodido como casa de um pobre conservadorismo sem poder, que não é muito diferente do conservadorismo com poder do antigo PFL. MS é um personagem interessante, na proporção de seu perigo. Por isso digo: Essa é uma crença importante para nós brasileiros: Ninguém tem direito à miséria. Mesmo uma miséria verde.Dentre outros motivos, porque a miséria não é terrível apenas para o miserável, mas para toda a composição da vida pública.
A extinção da miséria no Brasil fará muito bem para a dinâmica partidária brasileira. Pode ser que inclusive enfraqueça os partidos que representam os trabalhadores. Mas é o que me dá mais confiança no Partido do Trabalhadores, existe a consciência da luta pelo que é certo, ainda que esse certo coletivo seja danoso para a estratégia história de poder do partido. Mas antes do enfraquecimento histórico do PT, espero ver uma verdadeira democracia ambiental dele emergir. Pois bem, sabemos que nessa eleição não teremos a vitória dos projetos de miséria verde, mas esse espectro, pelo que me parece, não desaparecerá, porque a derrota da miséria, iniciada pelo governo Lula, e que será aprofundada, pelos oito anos do governo Dilma, será constantemente ameaçada pela profunda vontade de recurralizar o eleitorado brasileiro. Seja pela vontade de domínio industrial interno, seja pela vontade de domínio do capital externo, seja pela brincadeira de palavras segundo a qual a miséria verde não é miséria. Assim, devemos lutar por um projeto ambiental brasileiro que seja coerente com a reconfiguração do quadro eleitoral causada pela batalha à miséria. Temos que conquistar uma vida pública ecologicamente sustentável.
(*) Cesar Kiraly é doutor em ciência política pelo IUPERJ, onde coordena o Laboratório de Estudos Hum(e)anos.
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