Uma bela matéria que saiu na Carta Capital hoje e que nos faz refletir sobre as nossas bibliotecas incendiadas diariamente, jogadas no esquecimento dos asilos ou rechaçadas do nosso quotidiano sob o argumento de serem "um atraso" para a modernidade, que tem que ser sempre rápida e eficiente. A lógica é: se eles não podem correr atrás, então que fiquem no passado.
Leia e reflita!O saber ancestral dos indígenas
Rota Inca9 de setembro de 2010 às 9:20h
O respeito e admiração pelos idosos é indissociável da cultura indígena sul-americana
Logo no primeiro dia da expedição Ruta Inka 2010, na Bolívia, estivemos alojados no centro comunitário da cidade de Tiahuanaco, que guarda as ruínas e sabedoria de um dos mais avançados povos ameríndios. Ali tive os primeiros contatos e algumas poucas conversas com os reservados aymaras, que trajavam sua bela vestimenta típica. Um dos líderes locais, Eusebio Mamani Choque, nos falava do resgate dos valores tradicionais que vem sendo feito desde a chegada de Evo Morales à presidência do país. Explicava as unidades organizativas indígenas -ayllu, marka e suyo- que estão sendo resgatadas pelos povos e reconhecidas pelo Estado. Os ayllus são comunidades pequenas que mantém laços familiares; marka é a federação que reúne ayllus; o conjunto de markas vai formar um suyo.
No Perú, passamos por Acomayo, um povoado esquecido no departamento de Cuzco, que embora contenha em seu entorno uma magnífica fortaleza inca (o Waqra Pukara) não desfruta das benesses do turismo que brotam em Machu Picchu, não muito longe dali. Creio que só pude suportar a longuíssima caminha até a fortaleza graças ao mais incrível e delicioso café-da-manhã da minha vida. A paisagem parecia contraditória com tanta fartura: montanhas bastante secas, em altitude de mais de 2 mil metros e pouca vegetação. Mas a culinária andina abusa da criatividade e do conhecimento adquirido em milênios para criar o diverso a partir do pouco disponível. Em um espanhol com um notável sotaque de quéchua, um senhor me explicava sobre o chuño (pronuncia-se “tchunho”), batata desidratada que pode durar por anos, geralmente estocada para comer no período do rigoroso inverno andino, quando há muita escassez. Nesse banquete, havia até inseto frito- há que ressaltar: uma delícia!
Não poderia esquecer do encontro com os índio chibuleos no Equador. Ali me cativou definitivamente a sabedoria indígena. Tivemos palestras sobre temas diversos relacionados à cultura e conhecimento tradicionais com sábios locais. Foi incrível conhecer seu Nazário Caluña (foto), homem com mais de 70 anos de idade, e um dos fundadores do movimento indígena equatoriano. Grande lutador, líder comunitário e nacional, intelectual, pesquisador e historiador de seu povo, que viajou diversos países para levar a cultura e luta dos povos nativos. Achei curioso que embora ele levasse nome ocidental, seu filho houvesse sido batizado com nome indígena. Justo ele, o primeiro da família a aprender a ler e escrever, que pôde ganhar o mundo mas não se esquecer de seu passado.
Seu Nazário me contava que quando pequeno sempre ouvia os indígenas sendo chamados de muitos nomes ruins na cidade e que a partir daí despertou sua curiosidade e quis entender porquê os tratavam assim. Muitos anos depois, tal curiosidade iria resultar no livro Os Chibuleos, no qual ele analisa diversos aspectos culturais da sua comunidade. Em sua fala atenciosa e lenta, de sua voz já carcomida pela idade avançada, fluía uma sabedoria simples e genuína, valorizando as tradições e se distanciando da arrogância de muitos intelectuais e políticos com que estamos acostumados.
Ainda no Equador, não só em Chibuleo, mas também em Cuenca e Cañar, pudemos sentir profundamente a espiritualidade indígena nas cerimônias oferecidas pelos taitas- “Não me chamem de xamã, pois esse é um nome dado pelos ocidentais” dizia um deles. Fiquei realmente impressionado como era possível olhar o mundo de uma outra perspectiva, onde os laços comunitários e o amor à natureza vêm em primeiro plano. Livrando-se dos preconceitos e etnocentrismo é possível abrir a cabeça e valorizar outros tipos de conhecimento, ao invés de ficar restrito ao pensamento ainda eurocêntrico ensinado nas escolas e universidades. Sem querer desprezar o conhecimento acadêmico ou as contribuições da cultura européia mas, afinal, não somo frutos justamente da misturas entre as culturas indígenas que sempre estiveram aqui, dos povos africanos violentamente despejados em nossas terras, dos imigrantes europeus, orientais e árabes?
Talvez um grande equívoco seja querer medir com as réguas da modernidade conhecimentos que se sustentaram por milhares de anos. Nas últimas décadas intensifica-se a visão dos mais velhos como ultrapassados, inúteis ou improdutivos, portadores de valores antiquados, mão-de-obra desatualizada diante das novas tecnologias ou um peso com que as famílias e governos (saúde, previdência) têm que arcar numa sociedade onde a expectativa de vida não para de crescer. É uma idéia tão moderna quanto contrária ao que foi construído em grande parte das culturas mais antigas do planeta, que geralmente associam longevidade com sabedoria.
A valorização dos saberes tradicionais e não só o respeito mas também a admiração pelos idosos é indissociável da cultura ancestral sul-americana, está presente na fala e na atitude de crianças, jovens e adultos. Não há exatamente essa separação explícita entre passado e presente, os ancestrais falecidos são consultados nas cerimônias espirituais, são parte da construção e da identidade de cada índio e a razão de ainda estarem vivos como povos e culturas.
Conversar com os mais velhos era a melhor forma de aprender em sociedades que não conheciam a escrita e muito menos outros tipos de tecnologia. Um jovem indígena colombiano sintetizaria: “Os anciões são como bibliotecas ambulantes. Se morrem, morre todo o conhecimento que guardam. E se nós jovens não buscamos e aprendemos com os mais velhos esse conhecimento se perde, é como queimar uma biblioteca inteira”. E nós, quantas bibliotecas não estaremos queimando diariamente?
O respeito e admiração pelos idosos é indissociável da cultura indígena sul-americana
Logo no primeiro dia da expedição Ruta Inka 2010, na Bolívia, estivemos alojados no centro comunitário da cidade de Tiahuanaco, que guarda as ruínas e sabedoria de um dos mais avançados povos ameríndios. Ali tive os primeiros contatos e algumas poucas conversas com os reservados aymaras, que trajavam sua bela vestimenta típica. Um dos líderes locais, Eusebio Mamani Choque, nos falava do resgate dos valores tradicionais que vem sendo feito desde a chegada de Evo Morales à presidência do país. Explicava as unidades organizativas indígenas -ayllu, marka e suyo- que estão sendo resgatadas pelos povos e reconhecidas pelo Estado. Os ayllus são comunidades pequenas que mantém laços familiares; marka é a federação que reúne ayllus; o conjunto de markas vai formar um suyo.
No Perú, passamos por Acomayo, um povoado esquecido no departamento de Cuzco, que embora contenha em seu entorno uma magnífica fortaleza inca (o Waqra Pukara) não desfruta das benesses do turismo que brotam em Machu Picchu, não muito longe dali. Creio que só pude suportar a longuíssima caminha até a fortaleza graças ao mais incrível e delicioso café-da-manhã da minha vida. A paisagem parecia contraditória com tanta fartura: montanhas bastante secas, em altitude de mais de 2 mil metros e pouca vegetação. Mas a culinária andina abusa da criatividade e do conhecimento adquirido em milênios para criar o diverso a partir do pouco disponível. Em um espanhol com um notável sotaque de quéchua, um senhor me explicava sobre o chuño (pronuncia-se “tchunho”), batata desidratada que pode durar por anos, geralmente estocada para comer no período do rigoroso inverno andino, quando há muita escassez. Nesse banquete, havia até inseto frito- há que ressaltar: uma delícia!
Não poderia esquecer do encontro com os índio chibuleos no Equador. Ali me cativou definitivamente a sabedoria indígena. Tivemos palestras sobre temas diversos relacionados à cultura e conhecimento tradicionais com sábios locais. Foi incrível conhecer seu Nazário Caluña (foto), homem com mais de 70 anos de idade, e um dos fundadores do movimento indígena equatoriano. Grande lutador, líder comunitário e nacional, intelectual, pesquisador e historiador de seu povo, que viajou diversos países para levar a cultura e luta dos povos nativos. Achei curioso que embora ele levasse nome ocidental, seu filho houvesse sido batizado com nome indígena. Justo ele, o primeiro da família a aprender a ler e escrever, que pôde ganhar o mundo mas não se esquecer de seu passado.
Seu Nazário me contava que quando pequeno sempre ouvia os indígenas sendo chamados de muitos nomes ruins na cidade e que a partir daí despertou sua curiosidade e quis entender porquê os tratavam assim. Muitos anos depois, tal curiosidade iria resultar no livro Os Chibuleos, no qual ele analisa diversos aspectos culturais da sua comunidade. Em sua fala atenciosa e lenta, de sua voz já carcomida pela idade avançada, fluía uma sabedoria simples e genuína, valorizando as tradições e se distanciando da arrogância de muitos intelectuais e políticos com que estamos acostumados.
Ainda no Equador, não só em Chibuleo, mas também em Cuenca e Cañar, pudemos sentir profundamente a espiritualidade indígena nas cerimônias oferecidas pelos taitas- “Não me chamem de xamã, pois esse é um nome dado pelos ocidentais” dizia um deles. Fiquei realmente impressionado como era possível olhar o mundo de uma outra perspectiva, onde os laços comunitários e o amor à natureza vêm em primeiro plano. Livrando-se dos preconceitos e etnocentrismo é possível abrir a cabeça e valorizar outros tipos de conhecimento, ao invés de ficar restrito ao pensamento ainda eurocêntrico ensinado nas escolas e universidades. Sem querer desprezar o conhecimento acadêmico ou as contribuições da cultura européia mas, afinal, não somo frutos justamente da misturas entre as culturas indígenas que sempre estiveram aqui, dos povos africanos violentamente despejados em nossas terras, dos imigrantes europeus, orientais e árabes?
Talvez um grande equívoco seja querer medir com as réguas da modernidade conhecimentos que se sustentaram por milhares de anos. Nas últimas décadas intensifica-se a visão dos mais velhos como ultrapassados, inúteis ou improdutivos, portadores de valores antiquados, mão-de-obra desatualizada diante das novas tecnologias ou um peso com que as famílias e governos (saúde, previdência) têm que arcar numa sociedade onde a expectativa de vida não para de crescer. É uma idéia tão moderna quanto contrária ao que foi construído em grande parte das culturas mais antigas do planeta, que geralmente associam longevidade com sabedoria.
A valorização dos saberes tradicionais e não só o respeito mas também a admiração pelos idosos é indissociável da cultura ancestral sul-americana, está presente na fala e na atitude de crianças, jovens e adultos. Não há exatamente essa separação explícita entre passado e presente, os ancestrais falecidos são consultados nas cerimônias espirituais, são parte da construção e da identidade de cada índio e a razão de ainda estarem vivos como povos e culturas.
Conversar com os mais velhos era a melhor forma de aprender em sociedades que não conheciam a escrita e muito menos outros tipos de tecnologia. Um jovem indígena colombiano sintetizaria: “Os anciões são como bibliotecas ambulantes. Se morrem, morre todo o conhecimento que guardam. E se nós jovens não buscamos e aprendemos com os mais velhos esse conhecimento se perde, é como queimar uma biblioteca inteira”. E nós, quantas bibliotecas não estaremos queimando diariamente?
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