segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Fome, o grande paradoxo na América Latina e Caribe

"No mundo, 70% das pessoas com fome vivem em áreas rurais dos países em desenvolvimento. Na América Latina e Caribe, cerca de metade da população indigente vive no campo. Em geral, são pequenos agricultores sem terra ou com pouca terra, mas sem capacidade de irrigar, e trabalhadores temporários.
Do outro lado, nossa região tem um superávit de 30% na oferta de energia alimentar. Esse cálculo já desconta as exportações, ou seja, produzimos mais do que o suficiente para alimentar toda a população regional, mas ainda existem mais de 50 milhões de pessoas com fome. Esse é o grande paradoxo na América Latina e Caribe."


Esta é uma entrevista que saiu na Revista Fórum com o ex-ministro e atual representante regional da FAO para América Latina e Caribe José Graziano da Silva.
É grande, mas vale a pena!

Por Adriana Delorenzo[26 de agosto de 2010 - 10h03]
Estima-se que cerca de um bilhão de seres humanos passam fome, sendo subnutridos. Desses, 642 milhões vivem na Ásia e no Pacífico; 265 milhões, na África Subsaariana; 42 milhões, no Oriente Médio e norte da África; 15 milhões em países desenvolvidos e 53 milhões na América Latina e Caribe, segundo números da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO). Para José Graziano da Silva, representante regional da FAO para América Latina e Caribe, o “grande paradoxo” da região é que se produz mais do que o suficiente para alimentar a todos, mas o problema ainda persiste. O ex-ministro de Segurança Alimentar e Combate à Fome falou à Fórum sobre como alcançar a soberania alimentar, sobre agricultura familiar, agroecologia, transgênicos, biocombustíveis e a relação desigual entre os pequenos produtores e o agronegócio.

Fórum – A FAO avalia que as calorias per capita produzidas pelo planeta seriam suficientes para o consumo mínimo, e mesmo assim há fome no mundo. Por quê?

José Graziano da Silva – Na maior parte das regiões do mundo, com exceção do norte da África, a fome não é hoje um problema de produção insuficiente de alimentos. É um problema de acesso: milhões de pessoas não têm dinheiro suficiente para comprar os alimentos que precisam.

Essa situação se agravou muito com a alta dos preços de 2006-2008 e a crise econômica que a seguiu. Cabe destacar que, embora os preços dos alimentos tenham caído desde seu pico em 2008, continuam em níveis elevados, e a previsão é que continue assim pelos próximos anos. Os países mais afetados pela crise foram justamente os mais pobres e importadores de alimentos e de energia. Diminuir a insegurança alimentar nesses países passa por aumentar a produção agrícola local para reduzir a dependência das importações.
Nas últimas décadas, muitos deles tiveram que abandonar seu setor agrícola porque não conseguiam competir com os preços mais baixos (por causa de subsídios) dos países desenvolvidos. Portanto, o desafio é aumentar o investimento no setor agrícola dos países em desenvolvimento – que caiu significativamente desde o início da década de 80 – para que eles sejam menos dependentes dos mercados internacionais e menos vulneráveis a situações como a que vivemos em 2006-2008.

Fórum – Por que o incentivo à agricultura familiar pode ser um atalho para alcançar avanços sociais em curto espaço de tempo? E como se pode fortalecê-la?

Graziano – No mundo, 70% das pessoas com fome vivem em áreas rurais dos países em desenvolvimento. Na América Latina e Caribe, cerca de metade da população indigente vive no campo. Em geral, são pequenos agricultores sem terra ou com pouca terra, mas sem capacidade de irrigar, e trabalhadores temporários.
Do outro lado, nossa região tem um superávit de 30% na oferta de energia alimentar. Esse cálculo já desconta as exportações, ou seja, produzimos mais do que o suficiente para alimentar toda a população regional, mas ainda existem mais de 50 milhões de pessoas com fome. Esse é o grande paradoxo na América Latina e Caribe.

Na maioria dos países em desenvolvimento, a agricultura familiar tem um enorme potencial não explorado. Isso pode ser visto na brecha de produtividade entre o setor agroexportador e a agricultura familiar. Apoiar a agricultura familiar impulsionaria a produção de alimentos nas áreas onde isso é mais necessário. Produzindo mais, de forma sustentável, os pequenos agricultores podem garantir os alimentos necessários para consumo próprio e para venda nos mercados locais, contribuindo também para dinamizar essas economias.
Na 31a Conferencia Regional da FAO para América Latina e Caribe, realizada em abril deste ano, no Panamá, os países reconheceram que a agricultura familiar é essencial para a segurança alimentar na região e que, para fortalecê-la, é importante realizar ações como: melhorar a inserção no mercado dos pequenos agricultores e sua participação em cadeias produtivas, melhorar a infraestrutura rural e os mecanismos de financiamento para as atividades rurais, e promover tecnologias e práticas que respondam aos desafios da mudança climática (por exemplo, sementes mais resistentes à seca).
Estas políticas permitem tornar aquilo que, para muitos, é um problema – a agricultura familiar – em parte da solução.

Um tipo de ação que a FAO considera muito positiva é a vinculação da agricultura familiar com os programas públicos de compras locais. Ao abastecer programas sociais com produtos da agricultura familiar se garante um mercado ao pequeno produtor e a alimentação de pessoas vulneráveis (crianças, no caso da vinculação com a merenda escolar). O incentivo às compras locais, por sua vez, contribui para movimentar as economias rurais.
O Brasil é um dos exemplos nessas áreas, com programas como o PAA, de compras locais da agricultura familiar e a determinação de que 30% dos produtos da merenda escolar devem ser comprados de agricultores familiares. Outros países também desenvolvem programas nessa área. Um deles é o Haiti, onde, por meio do programa Lait a gogo (Muito leite), pequenos agricultores vendem produtos lácteos para consumo nas escolas do país. Esse programa foi criado por uma ONG e tem apoio do governo haitiano e da comunidade internacional. A FAO está construindo um centro de beneficiamento de leite produzido nesse programa e, através de uma doação ao Programa Mundial de Alimentos (PMA), o governo brasileiro ajuda a financiar a compra do leite.

Fórum - Josué de Castro, em "A geografia da fome", disse que a fome está nas áreas rurais, onde no Brasil há a questão da concentração fundiária. Nesse sentido, a reforma agrária seria um passo importante para solucionar a fome e desnutrição que ainda persistem? Quais elementos uma reforma deve considerar? Qual a sua avaliação a respeito do que aconteceu em relação à reforma agrária no governo Lula?

Graziano - No mundo, e o Brasil não é uma exceção, a demanda pela terra é cíclica e aumenta em épocas de crises. A grande pressão por terra no Brasil começou na década de 80 e continuou até a primeira metade da década passada, 2003, 2004. A partir do momento que o Brasil voltou a crescer economicamente essa pressão diminuiu.

O governo brasileiro tem avançado na questão agrária e, segundo dados do Incra, mais de 500 mil famílias foram assentadas entre 2003 e 2009. Boa parte dos assentamentos foi realizada durante os primeiros anos do governo Lula. Nos anos mais recentes, quando a pressão por terra diminuiu, o foco da política agrária passou a ser o apoio às famílias assentadas. Isso é essencial, porque apenas o acesso a terras não resolve o problema.

É importante que o acesso à terra seja parte de um conjunto mais amplo de políticas para o meio rural, que incluam o acesso a recursos naturais de modo geral (o acesso não só a terra, mas também à água é essencial para viabilizar a produção da agricultura familiar), a mercados, capacitação, financiamento, e infraestrutura básica (estradas, luz, saneamento, saúde, educação, etc.).

O governo tem feito isso e consideramos essa decisão acertada. O programa Territórios da Cidadania, que tem um enfoque de desenvolvimento territorial, é um bom exemplo de como promover a integração no meio rural. Experiências similares existem em outros países, como na Espanha. O Pronaf, os programas de compra da agricultura familiar são outras ações importantes para o desenvolvimento rural.

Fórum – O que é necessário para equilibrar o mercado desigual entre pequenos e as grandes multinacionais que dominam a produção agrícola planetária?

Graziano – Essa é uma resposta difícil porque depende muito do papel dos estados nacionais. Uma ação importante seria, como acontece nos países desenvolvidos, regular as cadeias produtivas na agricultura como, por exemplo, a relação entre agroindústria e fornecedores, que é sempre uma relação oligopolista.
Dessa forma pode-se evitar a concentração no fornecimento de matérias-primas determinando quantias mínimas que precisam ser abastecidas por fornecedores autônomos e agricultores familiares e impedir a devolução de produtos arbitrária pela agroindústria. Por exemplo, do leite que ficou azedo porque passou horas mal armazenado na indústria antes do seu processamento. Situações parecidas estão presentes em todas as cadeias produtivas (a cana suja, o tomate amassado etc.). Com uma regulação que ampare os pequenos produtores, o resultado é muito diferente daquele onde o “laissez-faire” impera.

O que a recente crise econômica mostrou é que não podemos nos fiar em mercados globais desregulados, nem os pequenos nem os grandes; nem os produtores, nem os consumidores. Os preços dos alimentos permanecem altos se comparados à média dos últimos anos, e existe aumento de volatilidade financeira e climática – que afeta a produção porque tira a previsibilidade que os agricultores precisam para poder produzir.
Voltar a investir na agricultura dos países em desenvolvimento é uma forma de reduzir a dependência – em muitos países essa era uma dependência total – nos mercados. A FAO está alcançando esse objetivo em diversos países, através de diversas ações, incluindo programas que incentivam a produção local de sementes, o uso de boas práticas agrícolas para aumentar a produção e reduzir seu impacto ambiental e integrar os pequenos produtores em cadeias produtivas.

Fórum – A agroecologia e a agricultura orgânica dariam conta de atingir a soberania alimentar, ou teremos que engolir os transgênicos? Por quê?

Graziano – A FAO prevê que, até 2050, precisaremos aumentar a produção de alimentos em 70% para alimentar uma população mundial de mais de 9 bilhões de pessoas. Segundo a FAO, apenas 20% desse aumento será resultado de aumento da terra plantada, e 80% será resultado de ganhos de produtividade.
Não dependemos de organismos geneticamente modificados para garantir a segurança alimentar hoje ou em 2050. Mas tampouco podemos pensar que somente a agroecologia e/ou a agricultura orgânica – que ainda dão os primeiros passos de uma longa trajetória tecnológica que apenas se vislumbra no horizonte – pode dar reposta sozinha a essa escala exigida no mundo atual. Na verdade o esforço requer a mobilização de todos os recursos e tecnologias disponíveis para produzir de maneira sustentável. Estamos apenas iniciando uma longa caminhada para ter uma nova revolução verde – espero que duplamente verde, como preconizam muitos – que aumente a produção e o faça de maneira sustentável.

Existem diversas outras tecnologias disponíveis que podem contribuir para o aumento da produção de alimentos. São tecnologias às quais, de modo geral, os pequenos produtores dos países em desenvolvimento não têm acesso. Hoje o que mais preocupa a FAO é a enorme brecha existente entre a tecnologia disponível para se produzir de uma forma sustentável e o que se utiliza de fato. A falta de informação, de capacitação e de recursos financeiros é um fator que ajuda a explicar a falta de acesso às tecnologias modernas e sustentáveis.

Muitas outras tecnologias que foram criadas em países desenvolvidos foram importadas sem serem adaptadas às condições específicas dos países em desenvolvimento, produzindo efeitos colaterais danosos ao meio ambiente. É o caso do cultivo mínimo, por exemplo, nas regiões tropicais, só para relembrar que o arado de disco foi introduzido nas regiões temperadas para acelerar o degelo do solo no final do inverno e permitir ter as terras prontas para a semeadura mais cedo no início da primavera.

Portanto, é preciso investir em ciência para que novas tecnologias sejam acessíveis aos pequenos produtores e sejam adaptadas às condições específicas dos países em desenvolvimento. Entre a ampla gama de técnicas que poderiam receber uma maior disseminação estão o plantio direto, o controle integrado de pragas e o uso de sistemas de irrigação eficientes.

As biotecnologias são uma alternativa a mais para o aumento da produção de alimentos e englobam uma série de tecnologias relacionadas a áreas como a caracterização genética e a conservação dos recursos genéticos, o diagnóstico de doenças animais ou vegetais e o desenvolvimento de vacinas. O uso dessas tecnologias, embora esteja concentrado nos países desenvolvidos, também traz benefícios importantes para os países em desenvolvimento. Para citar apenas alguns exemplos, na África, a biotecnologia foi utilizada para a produção do arroz Nerica, que dobrou a produtividade no continente; em Bangladesh, técnicas de inseminação artificial aumentaram a produção de leite e derivados; e na Índia, testes de DNA permitiram a detecção de doenças no cultivo de camarões.

A modificação genética de organismos é outro tipo de biotecnologia que tem potencial para aumentar a produtividade, mas que tem riscos associados e também causa preocupação na opinião pública e divisão na comunidade científica. Por isso, a FAO mantém uma posição de cautela no tema, defendendo o “princípio da precaução” que garante ao consumidor o direito de ser informado se o produto contém ou não, entre seus componentes, organismos geneticamente modificados ou que tenham sido produzidos a partir deles e o cuidado também na introdução de organismos geneticamente modificados na natureza. No entanto, a decisão do caminho a seguir é uma decisão soberana de cada país.

Fórum – Cerca de metade de toda a área habitável do mundo é utilizada para agricultura e criação de animais e a agroindústria é um d os maiores setores econômicos. O que é necessário para tornar a produção de alimentos sustentável, inclusive em relação à preservação das florestas? Qual a sua avaliação sobre a proposta para o Código Florestal brasileiro apresentada pelo deputado Aldo Rebelo, do PCdoB?

Graziano - O papel da FAO é contribuir ao desenvolvimento agrícola e promoção da segurança alimentar nos países colocando à disposição dos países seus conhecimentos e a informação para que eles possam tomar decisões informadas, auxiliando no desenho de políticas e leis e na implantação de políticas públicas relacionadas à agricultura e alimentação sempre que solicitados pelo governo. É importante frisar que a decisão de que políticas adotar é soberana de cada país. Esse princípio foi reafirmado na Cúpula Mundial sobre a Segurança Alimentar, realizada em novembro de 2009, na sede da FAO, e também vale para a questão das florestas.

Eu não tenho acompanhado a discussão específica sobre a reforma do código florestal brasileiro, mas a FAO defende que é possível garantir a segurança alimentar mundial sem avançar sobre florestas e áreas protegidas. Como disse antes, precisamos aumentar os investimentos no setor agrícola dos países em desenvolvimento e disseminar melhor as tecnologias já existentes e que ainda não são acessíveis para a maioria dos agricultores pobres.

Uma produção agrícola ambientalmente sustentável também é cada vez mais importante diante dos efeitos cada vez mais visíveis da mudança climática: o uso de boas práticas agroflorestais, por exemplo, não só aumenta a produtividade e a produção, mas ajuda a conservar o solo e protegê-lo de eventos climáticos extremos. Há diversos exemplos disso. No chamado Corredor Seco da Guatemala, por exemplo, as safras de agricultores que utilizavam essas práticas resistiram melhor à seca que atingiu a região em 2009.

A FAO tem demonstrado que temos tecnologia e recursos suficientes para aumentar a produção de alimentos de maneira sustentável sem avançar sobre florestas e áreas de preservação ambiental. Uma política que pode ajudar a alcançar esse objetivo é o zoneamento agro-ecológico.

Além disso, cabe lembrar que 75% dos pastos utilizados para a produção pecuária na América Latina têm algum grau de degradação. Recuperá-los diminuirá a pressão sobre novas terras para a produção pecuária. Nos últimos anos temos conseguido avanços tecnológicos importantes, como o uso de capim melhorado nas pastagens, que nos permitem intensificar a produção pecuária. As pastagens degradadas são a nova fronteira agrícola.


Fórum – Para encerrar, quais os desafios para evitar que os biocombustíveis provoquem impactos negativos na produção de alimentos?

Graziano – O impacto que a produção de biocombustíveis terá sobre a segurança alimentar e a produção de alimentos de cada país varia de acordo com suas condições específicas e com a matéria-prima utilizada. Não podemos generalizar. O Brasil provou que é possível, simultaneamente, produzir biocombustíveis, aumentar a produção de alimentos e a segurança alimentar.

Também precisamos considerar que os impactos da produção de biocombustíveis vão além das fronteiras do país que o produz e dependem da matéria-prima utilizada. O uso de milho e outros cereais pode afetar a disponibilidade de alimentos.

Para evitar que a decisão política de um país afete a segurança alimentar mundial, a FAO defende a criação de um marco regulador internacional que garanta a produção sustentável de biocombustíveis.

Em regiões onde o problema de segurança alimentar está ligado ao acesso e não à disponibilidade de comida, produzir biocombustíveis pode ser uma oportunidade para incrementar a renda de agricultores familiares, como é o caso do Brasil, que incentiva sua participação na produção do biodiesel através do Selo Social.

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